No ano em que passaram trinta anos sobre o desaparecimento físico de José Afonso, os UHF homenagearam o seu património. São sete canções do mais importante cantautor e compositor português trabalhadas nos últimos anos por António Manuel Ribeiro, puxadas para o som ora elétrico ora acústico, a que se juntam três temas da banda no fio condutor do legado. O disco apresenta duas novas versões: "Traz Outro Amigo Também", estreado na rádio Antena 1 como primeira amostra do álbum, e "No Comboio Descendente" que serviu de single de apresentação.
Atentos à realidade política e social do país, os UHF são o rosto do rock de intervenção em Portugal. Com alguma influência de José Afonso, assumem uma posição ativa em relação a temas sensíveis na vida das pessoas. O líder da banda assume o poeta popular como fonte inspiradora e confessa: "Eu não quero imitar José Afonso, quero ler a sua genialidade."
A Herança do Andarilho sucede à coletânea Almada 79 na discografia dos UHF, e é um trabalho há muito desejado pelos fãs da banda. Entrou diretamente para o 19º lugar na tabela de vendas da AFP (Associação Fonográfica Portuguesa), para depois subir à 18ª posição no decorrer da terceira semana no mercado.
Antecedentes e desenvolvimento
A realização de um disco que homenageasse José Afonso, e a sua obra, há muito que fazia parte dos planos do líder dos UHF, António Manuel Ribeiro.[1]
"Quando anuncio em palco uma canção do José Afonso afirmo que um homem não morre, parte, e a obra que nos deixou prolonga a sua existência entre nós. É isso que queremos levar aos mais novos, canções de outro tempo que não têm data certa. Pertencem-nos."
A primeira vez que ouviu falar do cantor chamado José Afonso, teria 13 ou 14 anos, quando ouviu na rádio o tema "Os Vampiros". A arte da escrita de Afonso, plena de melodias belíssimas e ao mesmo tempo complexas, entusiasmou o jovem rapaz a descobrir a sua genialidade.[2] Já com os UHF, foi trabalhando as canções do trovador ao longo do tempo e foi também ouvindo os fãs que o desejo de avançar com um disco de tributo se consolidou. "Este é um daqueles discos que se faz uma vez na vida", referiu, lembrando que a primeira vez que trabalhou sobre um tema de José Afonso foi em 1994, com a "Morte Saiu à Rua", no disco Filhos da Madrugada cantam José Afonso.[3] Esse projeto reuniu algumas das bandas portuguesas mais mediáticas do início da década de 1990, com o objetivo de transmitir o legado de José Afonso às novas gerações. Foi um enorme sucesso comercial e crítico e reuniu no palco do antigo Estádio José Alvalade todas as bandas envolvidas, numa das realizações mais ambiciosas de sempre no panorama musical português.[4] Após essa experiência, os UHF sentiram-se motivados para criarem novas roupagens de algumas canções do poeta popular. Gravaram os temas "Grândola, Vila Morena" (2007), "Vejam Bem" (2010), "Era de Noite e Levaram" (2014), "Os Vampiros" (2014) e os recentes "Traz Outro Amigo Também", estreado no dia 24 de abril de 2017, na comemoração dos 43 anos da Revolução de Abril, na rádio Antena 1 como primeira amostra do álbum de tributo, e "No Comboio Descendente" – primeiro single – com a participação de Armando Teixeira.[5][6] São também convidados os companheiros de José Afonso: José Jorge Letria, Vitorino, Manuel Freire e Samuel, numa visita hard rock a “Grândola, Vila Morena”.[1] Com o lema 'Renovar e vencer o esquecimento', o disco A Herança do Andarilho foi lançado a 27 de outubro de 2017, em formato disco compacto e venda digital e, em fevereiro de 2018, no formato vinil. A faixa "A Morte Saiu à Rua" é um registo gravado ao vivo na Casa da Música em 18 de dezembro de 2013.[7]
Só me interessam as canções e o autor e trabalhar para prolongar a sua existência, a música popular reinventada que nos permitiu um canto coletivo como forma de existir, mais do que resistir (isso é dar força ao agressor) num tempo negro de censura e direitos humanos ceifados. Era por cá assim.
— António M. Ribeiro fala da importância social e política das canções de José Afonso.[2]
Autor maioritário do reportório da banda, António Manuel Ribeiro assume José Afonso como uma das suas grandes influências musicais, e reconhece: “Seria triste e enfadonho imitar a simplicidade de um génio. Por isso, fizemos leituras e revelamos canções importantes para os mais novos ouvirem”. Determinado em perpetuar o legado de José Afonso, sublinhou: “É dar continuidade à fantástica obra que nos deixou e revelar a semente herdada”.[1]
Sobre o homenageado
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, Zeca para amigos, nasceu a 2 de agosto de 1929 na freguesia de Glória, em Aveiro, onde passou a infância repartida por Angola e Moçambique. No regresso a Portugal foi viver para Belmonte e aos 11 anos mudou-se para Coimbra, onde mais tarde estudou Filosofia e História. Aproximou-se ao fado coimbrão tornando-se notado pelas suas interpretações – não apenas pela qualidade da sua voz mas pela originalidade que emprestava às interpretações – cantando grandes poetas, clássicos e contemporâneos, como forma de resistência ao regime.[8]
Teve uma breve carreira como professor do ensino secundário até ser expulso por incompatibilidades ideológicas face ao regime ditatorial vigente, restando-lhe dar aulas de explicações por necessidade financeira. Mais disponível para a música, revelou-se um compositor notável capaz de conciliar a música popular e os temas tradicionais com a palavra de protesto social.[9] Importa referir o papel fundamental e único da canção política. A literatura, o teatro ou o cinema tiveram um papel de relevo, mas foi a canção que uniu as vozes e as vontades e se misturou com o quotidiano dos civis e militares que fizeram a mudança com a Revolução de 25 de Abril de 1974.[10]
Duas de suas canções marcaram a libertação do país: "Os Vampiros" – tema fundador do canto político em Portugal – e "Grândola, Vila Morena", a segunda canção-senha da Revolução. José Afonso foi um símbolo da resistência democrática contra a ditadura que vigorou em Portugal entre 1933 e 1974. Desse tempo fica o registo da arte da canção e da poesia, a coragem dos cantores perseguidos, aprisionados, com os discos censurados e os espetáculos proibidos.[11] Mais do que um cantor de intervenção, José Afonso foi responsável por uma revolução musical, rompendo com tudo o que havia para trás na música popular portuguesa. A sua obra foi fortemente influenciada pelas andanças que fez por África, Trás-os-Montes, Beiras, Algarve, ilhas, Galiza e Astúrias, sendo considerado como o pai da world music em Portugal.[12]
José Afonso tentou comunicar valores e ideais, utopias e mensagens libertadoras, ansiou por um Portugal sem tabus, sem ter de calar o valor da liberdade, pelo que se tornou num vulto histórico, num modelo de afronta na luta contra o regime. Suas canções premeiam uma veia criadora, intensamente preocupada com causas humanas e sociais e são exemplo de ação e de luta constante, objetivando provocar a agitação e mudança contra o marasmo fomentado por um regime que necessitava de ser questionado e, por fim, substituído.
— O historiador Albano Viseu enaltece a personalidade e a lucidez de José Afonso.[13]
O poeta da liberdade, José Afonso, faleceu em Setúbal no dia 23 de fevereiro de 1987, com 57 anos, vítima de doença prolongada. Deixou o legado de 22 discos que revestem um artista da música, da poesia e da voz, que pôs a sua arte ao serviço da cidadania de uma maneira desprendida e desinteressada de forma a contribuir para uma sociedade sem muros nem ameias e sem exploradores nem explorados – "Em cada esquina um amigo/ Em cada rosto igualdade" – perpetuou o autor.[9][14] Trinta anos após a sua morte, é revelador do génio, da força e da influência de José Afonso, que a sua arte continue a embalar velhas e a despertar novas gerações portuguesas e não só, perpetuando-se e regenerando-se, sem que se apague a chama que continua a dar vida a noites e dias inteiros. José Afonso acreditava que a música tinha um papel transformador, que era essa a sua função enquanto músico. Mesmo depois do 25 de Abril, quando percebeu que a sociedade não seguia o rumo que ele teria querido, nunca desistiu. Tanto em 1970 como na atualidade, a música é detonada pelo seu tempo e pode fazer muitos estragos. As palavras não são armas mas podem ser usadas como tal.[15] Um homem que repudiava a guerra e todo o tipo de exploração, sem nunca se afirmar como um músico de intervenção enfrentou todo um regime político apenas com a sua voz e algumas palavras, desafiou toda uma mentalidade medrosa e acomodada, driblou a censura, não fez do cifrão a sua bússola e nem as paredes de betão em Caxias silenciaram a sua voz.[2] Portugal castigou-o como professor, esgotou-o como músico, maltratou-o como homem. A tudo resistiu, porque era assim que via a vida: como um ato de resistência, uma revolta contra o vazio.[16]
Letras e temas
A linguagem de José Afonso é muito especial, usa termos de várias áreas gramaticais cuja análise foi baseada na investigação dos significados lexicais, morfológicos e sémanticos das palavras das canções, e um vocabulário próprio recolhido de acontecimentos na sua vida em diferentes períodos.[17]
Versão rock dos UHF, com forte solo de guitarra. A canção fala da fraternidade e da amizade universal sem fronteiras.[18]
Problemas para escutar este arquivo? Veja a ajuda.
O disco de tributo abre com "Traz Outro Amigo Também", do álbum homónimo de 1970, que assinala uma nova fase no percurso musical e poético do autor. A canção exprime o generoso e persuasivo companheirismo entre homens e mulheres na luta pela democracia.[18] Segue-se o tema fundador do canto político nacional. Quando olhamos para o Portugal contemporâneo constatamos até que ponto as palavras de "Os Vampiros" se mantêm amargamente atuais, como libelo contra a forma como a arrogância do poder financeiro condena à pobreza, à exclusão e à revolta um número crescente de portugueses para quem o direito à indignação é verdadeiramente irrevogável. A palavra 'Vampiro' foi usada por Afonso, em 1970, no sentido figurativo de ditador, uma metáfora, na qual todas as pessoas eram controladas pelo regime perante um povo narcotizado e adormecido.[10][19] "Vejam Bem" fala da força do pensamento como primeiro passo para a mudança, e do desamparo e isolamento social de quem ousava opor-se ao regime.[20] Composto em parceria com Luís de Andrade, o tema "Era de Noite e Levaram" refere as perseguições da polícia política (PIDE) nas noites arbitrárias do fascismo. "Para dizer aos mais novos que o 25 de Abril não foi assim há tanto tempo, apesar do tempo que passou, maior que a sua idade. Por que cada feriado nacional tem uma história. Por isso a gravámos." Escrevem os UHF, e acrescentam: "Por que da música séria nasce a alegria da vida."[21]
Traz Outro Amigo Também
Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem,
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também.
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem,
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também.
Aqueles
Aqueles que ficaram
Em toda a parte todo o mundo tem,
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também.
No fio condutor do legado, os UHF acrescentaram três canções suas: "Nove Anos", "Porquê (português)" e "Vernáculo (para um homem comum)". A primeira foi escrita de relance no dia em que José Afonso faleceu. É um texto focado na vida do artista onde se inclui o aplauso, o esquecimento e muitas interrogações. Um tema de reflexão para o autor, António Manuel Ribeiro.[23] A segunda canção responsabiliza a medíocre classe política portuguesa pelo critico estado da nação de que resultou a crise financeira em 2008,[24] e "Vernáculo (para um homem comum)" é uma declamação musicada acompanhada por num texto delicado e assertivo, que espelha o pensamento das pessoas em relação aos governantes portugueses. Censurada pela rádio a canção foi um êxito na internet, em 2013, e tornou-se um manifesto antipolítico.[25] O cancioneiro de José Afonso continua com o tema "No Comboio Descendente", um poema de Fernando Pessoa que trata, alegoricamente, do processo de adormecimento social. O que deveria ser uma viagem de comboio longa, alegre e barulhenta é, na verdade, aborrecida, pois descendente é a animação dos viajantes.[20] "Grândola, Vila Morena" é o poema mais famoso de Afonso, o seu hino de utopia e libertação.[8] "Pequena homenagem à 'Sociedade Musical Fratemidade Operária Grandolense', onde atuei juntamente com Carlos Paredes", escreveu José Afonso.[20] Foi a canção escolhida, entre três, como uma das senhas da Revolução de 1974, não só porque as outras duas estavam proibidas pela censura, mas também por conter o trecho "o povo é quem mais ordena". Essa frase refere o poder popular que persistiu ao longo da ditadura, como prova que a ideologia da classe dominante não tinha penetrado no povo.[26] O disco encerra com "A Morte Saiu à Rua", canção que presta homenagem ao artista plástico José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 1961.[27]
Lista de faixas
O disco compacto é composto por dez faixas em versão padrão. Os temas "Nove Anos", "Porquê (português)" e "Vernáculo (para um homem comum)" são da autoria de António Manuel Ribeiro. Os temas "Era de Noite e Levaram" e "No Comboio Descendente" são, respetivamente, poemas de Luís de Andrade e de Fernando Pessoa, musicados por José Afonso, que compôs também as restantes canções.[28]
CD
N.º
Título
Compositor(es)
Duração
1.
"Traz Outro Amigo Também"
José Afonso
4:07
2.
"Os Vampiros"
José Afonso
3:48
3.
"Vejam Bem"
José Afonso
4:47
4.
"Era de Noite e Levaram"
Luís de Andrade / José Afonso
2:32
5.
"Nove Anos"
António M. Ribeiro
5:05
6.
"Porquê (português)"
António M. Ribeiro
2:25
7.
"Vernáculo (para um homem comum)"
António M. Ribeiro
10:10
8.
"No Comboio Descendente"
Fernando Pessoa / José Afonso
3:22
9.
"Grândola, Vila Morena"
José Afonso
3:56
10.
"A Morte Saiu à Rua" (Ao vivo na Casa da Música em 2013)
José Afonso
5:04
Duração total:
43:56
Desempenho comercial
A Herança do Andarilho entrou diretamente para o 19º lugar na tabela de vendas, e após três semanas de permanência atingiu a 18ª posição.[29]
Créditos
Lista-se abaixo os profissionais envolvidos na elaboração de A Herança do Andarilho, de acordo com o encarte do disco compacto.[30]
Todas as Faces de Um Rosto(2002)·Se o Amor Fosse Azul que Faríamos Nós da Noite?(2003)·Cavalos de Corrida–A poética dos UHF(2005)·O Momento a Seguir(2006)·BD Pop Rock Português - UHF(2011)·Por Detrás do Pano–35 histórias contadas na rádio & outras confissões(2015)·És Meu, disse Ela(2018)·De Almada Para o Mundo(2020)·Relatório da Mata dos Medos(2022)