As Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) são um grupo de infecções tropicais comuns em populações nas regiões em desenvolvimento da África, Ásia e Américas. Entretanto, essas doenças não estão limitadas a estes territórios e ocorrem em populações fora dos trópicos também, como nos casos de DTNs que acometem populações indígenas do Ártico ou em territórios de pobreza na América do Norte e na Europa. Na prática, as DTNs são um problema onde quer que haja pobreza extrema.[1]
As DTNs podem ser causadas por uma variedade de vírus, bactérias, parasitas, fungos e toxinas[2], e causam cerca de 200 mil óbitos anualmente[3]. Em 2021, 162 países tiveram pelo menos um caso de DTNs. Entretanto, a distribuição epidemiológica dessas doenças é desigual, sendo mais forte em locais que enfrentam pobreza, problemas de saneamento básico e impactos graves das mudanças climáticas[4]. Na prática, apesar de estarem distribuídas em 162 países, 80% do ônus das DTNs está concentrado em apenas 16 países.[4]
Estima-se que as DTNs afetem mais de 1 bilhão de pessoas por ano, enquanto o número de pessoas que necessitam de intervenções para DTNs (tanto preventivas quanto curativas) é de 1,6 bilhão (segundo dados de 2021).[5] Mesmo assim, esse número representa uma redução de 25% em comparação com 2010. [4]
Para dar mais visibilidade ao tema o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas foi instituído em 2020 pela Assembleia Mundial da Saúde e é celebrado em 30 de janeiro.[7]
Impactos sociais
Mulheres, crianças e pessoas geograficamente isoladas da assistência médica são desproporcionalmente afetadas por DTNs, assim como pessoas que vivem em áreas de conflito, devido à interrupção da infraestrutura de assistência médica. Além de prosperar na pobreza, as DTNs também são consideradas condições promotoras da pobreza, pois reduzem a produtividade dos trabalhadores, prejudicam o desenvolvimento infantil e, consequentemente, a capacidade de ganho futuro dessas crianças. A perda econômica resultante tende a piorar as condições de pobreza já existentes.[8]
Geralmente, as pessoas afetadas por deficiências e incapacidades causadas por DTNs enfrentam estigmas e discriminação em suas comunidades, o que dificulta o acesso aos cuidados necessários e leva ao isolamento social.[9]
Impactos econômicos
Os impactos econômicos dessas doenças podem ser avaliados somando-se os custos diretos dos gastos com prevenção e tratamento com os custos indiretos do tempo de trabalho produtivo perdido devido à morbidade e à mortalidade. Em um nível microeconômico, a análise dos custos fornece informações sobre o efeito em famílias e empresas individuais, enquanto que em nível macroeconômico a análise dos efeitos das DTNS pode mostrar efeitos no desempenho econômico de uma nação.[10]
Um exemplo desses impactos pôde ser observado em um estudo de 2007[11] que projetou que a infecção crônica por ancilostomíase durante a infância reduz o salário futuro em 43%. Esse estudo permitiu concluir que a infecção por ancilostomíase representa um fator importante para prender as pessoas de baixa renda em um ciclo de pobreza.
Em Gana, o custo do tratamento por paciente com úlcera de Buruli oscila entre 94% e 242% dos ganhos anuais da família, a depender da faixa de renda, segundo dados de 2010. Embora o efeito econômico em ambos os grupos de renda seja grave, essa diferença indica desigualdade, uma vez que os custos do tratamento afetam desproporcionalmente a renda das famílias de renda mais baixa. Existem diversos estudos que apontam os impactos individuais e/ou familiares de DTNs em contextos específicos. Entretanto, se os casos individuais de perda de produtividade forem ampliados, o efeito sobre a produtividade em nível nacional e internacional é substancial.[12][10]
O impacto macroeconômico de outras doenças tem sido amplamente divulgado para fortalecer o argumento a favor do aumento do financiamento e para promover o desenvolvimento. As taxas de retorno das intervenções para controlar as DTNs (estimadas em 15-30%) não são adequadamente capturadas nas análises de custo-efetividade, pois elas geralmente se concentram apenas no efeito econômico no setor de saúde, sendo que apenas algumas incluem o efeito no paciente ou em sua família.[10]
Prevê-se que as campanhas de prevenção em larga escala aumentem a produção agrícola e os níveis de educação.[10]
Segundo dados de 2010, os custos do tratamento de doenças tropicais negligenciadas são pequenos em comparação com os do combate ao HIV/AIDS, à tuberculose e à malária. Levando em conta as doações de longo prazo de medicamentos, o custo total do tratamento de todos os infectados com oncocercose, filaríase linfática e tracoma é de cerca de US$ 0,46 por pessoa tratada. Esse valor é equivalente ao custo total de cerca de 12 preservativos ou menos da metade do custo anual de um mosquiteiro inseticida de longa duração para combater a malária.[10]
Esses baixos custos para o controle de doenças tropicais negligenciadas são impulsionados por quatro fatores: o compromisso das empresas farmacêuticas de fornecer medicamentos gratuitos; a escala dos programas; o potencial de sinergia dos modos de distribuição para aumentar a eficiência e reduzir os custos; e a contribuição voluntária, muitas vezes não remunerada, de comunidades e professores na distribuição de medicamentos. [10]
Entretanto, os baixos custos e a alta relação custo-benefício não garantem que uma intervenção seja viável e possa ser prontamente adotada como uma estratégia nacional. Devido à escassez de recursos e à concorrência entre as intervenções, os países podem reconhecer as vantagens de adotar medidas de controle das doenças tropicais negligenciadas, mas têm dificuldades para garantir os recursos financeiros. [10]
Algumas empresas farmacêuticas se comprometeram a doar os remédios necessários aos tratamentos, e a distribuição em massa foi bem sucedida em vários países.[13]
Razões para a negligência
Embora existam mais de um bilhão de pessoas afetadas por uma ou mais DTNs[14], elas não recebem atenção global proporcional, devido às suas localizações remotas ou à falta de voz política, ou mesmo porque a atenção pública tende a se concentrar em doenças com taxas mais altas de incidência e mortalidade ou sintomas sensacionais. Segundo a OMS, elas são “negligenciadas” porque estão praticamente ausentes da agenda global de saúde, têm recursos muito limitados e são praticamente ignoradas pelas agências de financiamento globais.[15] As DTNs são doenças de populações negligenciadas que perpetuam um ciclo de resultados educacionais ruins e oportunidades profissionais limitadas; além de serem associadas ao estigma e à exclusão social.
Subdiagnóstico
Além da grave subestimação dos impactos duradouros na saúde dos indivíduos afetados, o próprio número de diagnósticos é impreciso. Por exemplo, o Programa Africano de Controle da Oncocercose trata apenas de comunidades hiperendêmicas e mesoendêmicas; portanto, o número de indivíduos infectados em comunidades onde a prevalência de infecção por Onchocerca volvulus é menor que 40% não é conhecido e, portanto, não é incluído em nenhum cálculo do impacto.[10]
Estigma
O estigma afeta muito o controle de doenças ao diminuir a busca de ajuda e a adesão ao tratamento.[16] Além disso, os impactos psicossociais nos indivíduos afetados são um fardo a mais das DTNs, especialmente quando associados à perda do respeito próprio, sentimentos de desesperança, depressão, estigmatização, e uso de drogas e álcool. [4]Da mesma forma, o estigma também tem um papel no compromisso político com o controle de doenças.[17]
A lógica que motiva o estigma para diferentes condições inclui uma mistura de significado cultural, incômodo social causado pela desfiguração e deficiência, e medo exagerado de perigo e contágio. A influência relativa de cada um desses fatores pode variar a depender da história e contexto de cada local. Existem também estigmas associados a doenças específicas e seus sintomas, a depender do contexto e expectativas culturais. [17]
Por exemplo, muitas culturas condenam moralmente pacientes com hanseníase (lepra) e repercutem preconceitos e desinformação que impactam a vida e a sociabilidade das pessoas diagnosticadas. Desde a década de 1980, os programas de controle de doenças começaram a integrar a mitigação do estigma em suas ofertas. Por exemplo, na Índia, um programa de hanseníase priorizou a mensagem de que "a hanseníase tem cura, não é hereditária" para inspirar otimismo nas comunidades altamente afetadas. O objetivo era tornar a hanseníase uma doença "como qualquer outra", de modo a reduzir o estigma. Ao mesmo tempo, os recursos médicos foram otimizados para cumprir a promessa de que a doença poderia ser curada.[16]
Falta de incentivos econômicos
O tratamento e a prevenção de doenças tropicais negligenciadas não são vistos como lucrativos, portanto, as patentes e o lucro não desempenham nenhum papel no estímulo à inovação.
Embora os tratamentos possam ser relativamente baratos, o seu baixo preço é dependente de uma estrutura pouco lucrativa, baseada em quatro aspectos: o compromisso das empresas farmacêuticas de fornecer medicamentos gratuitos; a escala dos programas; as oportunidades de sinergia dos modos de distribuição; e a contribuição voluntária, muitas vezes não remunerada, de comunidades e professores na distribuição de medicamentos. [10]
Dessa forma, o investimento em tecnologias para controle e tratamento de DTNs não é visto como lucrativo, e não têm estímulo econômico para buscar a inovação.[10] A dependência de recursos internacionais é problemática, já que a alocação dos recursos de doações internacionais não reflete os ônus e custos de cada doença, assim como o potencial custo-benefício das intervenções contra DTNs. [18]
Dados de 2003 a 2007 apontam que os países doadores de Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD, ou, em inglês, Official Development Assistance, ODA) - um tipo específico de ajuda internacional - destinaram em média apenas 0,6% do total anual do orçamento para a luta contra as DTNs. Enquanto isso, a participação média dos projetos de controle do HIV/AIDS foi de 36,3%, da malária, 3,6%, e da tuberculose, 2,2%. [18]
Uma pesquisa de 2002 aponta que, para o setor farmacêutico, a pesquisa e o desenvolvimento são muito caros e arriscados para investir em doenças negligenciadas de baixo retorno. Segundo o mesmo estudo, iniciativas públicas e privadas tentaram superar essa limitação de mercado por meio de pacotes de incentivo e parcerias público-privadas.[19]
Entretanto, uma análise das iniciativas públicas e privadas constatou que havia uma chance 13 vezes maior de um medicamento recém-comercializado nos EUA ser para doenças do sistema nervoso central ou câncer do que para uma DTN.[19]
Pobreza e marginalização das populações afetadas
Como dito no início, as doenças tropicais negligenciadas ocorrem também fora dos trópicos. Estudando os casos entre as populações indígenas do Ártico, pesquisadores apontam que o marcador mais importante da demografia dessas doenças é a pobreza. [1]
Mesmo na Europa ou América do Norte, existem territórios de populações marginalizadas que sofrem com a negligência típica das DTNs. Na Europa, estão concentradas no leste e no sul da Europa, onde os níveis de pobreza são mais altos. As doenças mais prevalentes nessa região são a ascaridíase, a tricuríase, as infecções zoonóticas por helmintos e a leishmaniose visceral. [1]
Controle, tratamento e prevenção de DTNs
Muitas DTNs têm semelhanças nas medidas de tratamento, na epidemiologia e na distribuição geográfica. Dessa forma, muitas DTNs têm estratégias semelhantes para controle e erradicação.[20]
As medidas preventivas e o tratamento para algumas dessas doenças são conhecidos, mas não são disponíveis universalmente nas áreas mais pobres do mundo. A OMS recomenda cinco estratégias principais para lidar com o ônus das DTNs: quimioterapia preventiva, gerenciamento individual de doenças, controle de vetores, saúde pública veterinária e água, saneamento e higiene (WASH) dentro de uma abordagem sistêmica e transversal. [9]A experiência passada demonstrou que, embora uma intervenção possa predominar no controle de uma doença específica ou de grupos de doenças, o impacto sobre a morbidade e a transmissão é mais eficaz quando todas as intervenções necessárias são combinadas e realizadas simultaneamente.[21]
O controle de saúde pública das DTNs é complexo pois muitas delas são transmitidas por vetores, ficam alguns períodos armazenadas em animais e estão associadas a ciclos de vida complexos.[21]
“Meta 3.3: até 2030, acabar com as epidemias de AIDS , tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis.”[22]
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o combate às DTNs impacta e contribui para a realização de vários outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,como alcançar a igualdade de gênero e capacitar todas as mulheres e meninas (Objetivo 5), garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todos (Objetivo 6), construir uma infraestrutura resiliente (Objetivo 9), tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis (Objetivo 11) e tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos (Objetivo 13). [4]
Lista das doenças tropicais negligenciadas
Não há uma única lista padronizada de DTNs, e mesmo a da Organização Mundial da Saúde não é exaustiva. Alguns dos itens são categorias com variações internas, como as trematodíases ou as micoses profundas.[5]
O gráfico abaixo classifica as DTNs nos países em 3 categorias: ausente (pontuação 0), presente (pontuação 0,5) ou endêmica (pontuação 1). Esses valores foram totalizados para calcular o ônus, e as pontuações variaram de 0 a 14,5. O Brasil tem o vermelho mais forte, pois é o país que concentra a maior variedade de DTNS no mundo.[23]
No Brasil
Em um relatório que analisa dados das DTNs no Brasil entre 2015 e 2020, o Governo Brasileiro as maiores taxas de detecção de casos foram verificadas nas Regiões Norte e Nordeste. Foram cerca de 8 mil óbitos por ano no período, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste. [6]
Há uma relação direta entre detecção de DTNs e o Índice Brasileiro de Privação (IBP), que analisa a desvantagem que um indivíduo, família ou grupo enfrenta em relação à sua comunidade, local ou a sociedade de modo mais geral. As maiores taxas foram detectadas na população masculina, indígena e em >60 anos. Houve redução da detecção no período de 2007-2020 para o País e em todas as grandes regiões. [6]
No Brasil, a estimativa do Ministério da Saúde é que cerca de 30 milhões de pessoas se encontram sob risco no que concerne às DTNs. As DTNs mais comuns no país são: doença de Chagas, esquistossomose, filariose linfática, hanseníase, leishmaniose visceral, leishmaniose tegumentar, oncocercose, raiva humana, tracoma e acidente ofídico. [6]
O Brasil é o país com o maior número de NTDs com ocorrência regular e estabelecida. [20]Também é o país cujo plano de enfrentamento de NTDs abrange a maior quantidade de doenças de uma só vez. [24]Em 2012, o país lançou um plano nacional integrado de doenças tropicais negligenciadas. Ao vincular esse plano ao Brasil sem Miséria - o plano nacional para a redução da pobreza - o Brasil institucionalizou os fortes vínculos entre a pobreza e as doenças tropicais negligenciadas e ajudou a implementar abordagens intersetoriais consideradas eficazes por pesquisadores internacionais.[25]