Se Eu Fosse Ladrão... Roubava é um filme híbrido de docuficçãoportuguês de 2013, realizado e produzido por Paulo Rocha a partir de um argumento de Rocha, Regina Guimarães e João Viana.[3] A longa-metragem retrata fragmentos da memória do realizador acerca das suas origens, servindo de referência às cenas dos seus vários filmes que se intercalam na narrativa.[4] O elenco conta com a presença de dois intérpretes regulares no cinema do cineasta: Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra.[5]
Paulo Rocha revisita a infância e juventude do seu pai, personificado no personagem Vitalino. Em 1909, é ainda um pequeno agricultor na localidade do Douro de São Vicente, perturbado pelo momento em que vê o seu próprio pai ser vitimado pela peste.[9]
Quando, já nos anos 20, se torna o responsável máximo pela família, o jovem Vitalino não consegue deixar de sonhar obsessivamente com a possibilidade de emigrar para o Brasil.[10] Finalmente parte para o país, deixando a casa ao cuidado das irmãs. Na despedida da sua terra natal, o jovem não perde a determinação ou desejo de recomeçar a sua vida num local com mais oportunidades. O tema familiar cruza-se e une-se com a matéria dos filmes de Rocha, levando-o a refletir acerca das circunstâncias da sua própria partida (da doença e do medo).[11]
Inicialmente intitulado Olhos Vermelhos, o projeto nasce de uma ideia de Paulo Rocha, que convidou a cineasta Regina Guimarães para desenvolver o argumento original.[17] O título final é retirado da cantilena "Se fosse ladrão roubava / roubava aquela menina...", cantada em O Rio do Ouro.[18]
O filme foi gravado em 2011, em Ovar, local de residência do realizador, de modo a poder facilitar a produção, uma vez que as sequelas de acidente vascular cerebral de Rocha o condicionavam a deslocar-se em cadeira de rodas. Cintra, um dos colaboradores frequentes do cineasta filmou apenas durante um dia, uma experiência que descreveu de "comovente".[19]
Temas e estética
A longa-metragem não apresenta uma narrativa linear, algo que se começou a tornar frequente no cinema de Paulo Rocha a partir de Mudar de Vida. As sequências autobiográficas que acompanham a vida de Vitalino (o cineasta filma-se a partir desta versão do seu próprio pai) abrem caminho para inserirem-se sequências de todos os seus filmes (com exceção de O Desejado ou As Montanhas da Lua), bem como referências literárias (como o escritor Wenceslau de Moraes e o poeta Camilo Pessanha) e até para momentos de bastidores.[10] Nesta obra, Rocha parece querer definir-se, oferecendo um enquadramento de obra e artista, de modo a que: a sua infância corresponda A Pousada das Chagas; a adolescência a Mudar de Vida; o seu período no estrangeiro a A Ilha dos Amores e; o final de vida corresponda à morte de Ilda em Os Verdes Anos, personagem a quem é dado enterro na sequência final de Se Eu Fosse Ladrão… Roubava.[20]
Se Eu Fosse Ladrão... Roubava junta-se a outros filmes-testamento, como Le Testament d'Orphée (Jean Cocteau), Offret (Andrei Tarkovski), The Dead (John Huston), La Voce della Luna (Federico Fellini) e Madadayo (Akira Kurosawa). Ainda assim, Paulo Rocha aplica uma abordagem própria: não é de ensaio, resumo ou best of, mas uma remontagem e recontextualização inédita de cenas já celebradas.[21] Este método de colagem é reminiscente das técnicas de Amadeo de Souza Cardoso, artista acerca de quem Rocha criou a obra Máscara de Aço contra Abismo Azul, e com quem partilha o método de fusão de uma inspiração na cultura universal na cultura popular portuguesa.[10] Evidência da omnisciência do tradicional português está nas várias cenas de baile, uma constante ao longo de Se Eu Fosse Ladrão... Roubava, e que servem frequentemente de elo de ligação entre os fragmentos da obra do cineasta.[22]
Jorge Silva Melo, autor do texto que acompanha a divulgação oficial da longa-metragem a nível internacional, defende que Paulo Rocha não faz um retrato piedoso de si ou dos seus, pelo modo como convoca a participação de colaboradores frequentes e monta as suas cenas tornando evidente o envelhecimento dos corpos e a iminência da morte.[23] Esta reflexão transparece, por exemplo, no uso de cores mórbidas, focagem e no chiaroscuro na cena da morte do pai de Vitalino.[20] Ainda que tenha uma abordagem autobiográfica, Rocha não individualiza em demasia esta reflexão, ampliando-a a um olhar acerca da cultura e identidade de Portugal, e sobre como o medo corrói estas vertentes do país.[9]
Distribuição
Antes de falecer Paulo Rocha deixou Se Eu Fosse Ladrão... Roubava completo e estava em processo de digitalização e restauro das suas duas primeiras longa-metragens: Os Verdes Anos e Mudar de Vida.[24] O realizador deixou, em testamento, toda a sua obra e património cinematográfico à Cinemateca Portuguesa e manifestou o desejo que Se Eu Fosse Ladrão... Roubava fosse exibido no Festival Internacional de Cinema de Locarno, dada a importância do mesmo no início da sua carreira.[25] Tal veio a suceder-se e o filme estreou a 14 de agosto de 2013 no Festival, numa secção fora de competição.[26] Paralelamente, a Cinemateca Portuguesa realizou uma mesa redonda para debater o cinema de Rocha, com a participação da atriz Isabel Ruth, do realizador Pedro Costa, do subdiretor do Museu do Cinema José Manuel Costa, e do crítico Roberto Turigliatto.[27]
Se Eu Fosse Ladrão... Roubava teve a sua ante-estreia portuguesa a 31 de janeiro de 2014, numa sessão na Cinemateca Portuguesa com a presença de Isabel Ruth, Luís Miguel Cintra, Márcia Breia, Regina Guimarães, Acácio de Almeida e Edgar Feldman.[28] A longa-metragem foi lançada comercialmente em Portugal apenas no ano seguinte, a 14 de maio,[7] acompanhada pelo relançamento das cópias restauradas de Os Verdes Anos e Mudar de Vida.[29]
Ao longo de todo o mês de janeiro de 2018, a Cinémathèque Françaisea realizou uma retrospetiva do cinema de Paulo Rocha, organizada em parceria com a Cinemateca Portuguesa, e na qual foi integrado Se Eu Fosse Ladrão… Roubava.[30]
Receção
Audiência
Ao longo das 68 sessões comerciais de 2015 que exibiram o filme em Portugal, Se Eu Fosse Ladrão... Roubava totalizou 583 espectadores e uma receita de €2.339,20.[2]
Crítica
Se Eu Fosse Ladrão... Roubava foi alvo de comentários geralmente positivos da crítica de cinema portuguesa, apesar do consenso de que o mesmo seria inacessível para quem desconheça a filmografia de Rocha.[31] Discutindo este aspeto, Augusto M. Seabra, no Público, escreve uma exaltação da obra, começando por referir que "nunca, em vez alguma, vi um filme assim" e concluindo que "amo perdidamente este filme porque também vou reconhecendo os extractos dos anteriores neles incluídos, e não posso portanto imaginar qual será a reação de espectadores que irão ver o filme sem conhecimento dos outros, embora me pareça difícil não ser tocado pela sua beleza e o seu lado fúnebre.[18]
João Lopes, revela-se impressionado, no Diário de Notícias, pela exploração, na obra, da ambivalência da identidade portuguesa, que assim coloca em evidência o modo como "a angústia do que somos se cruza sempre com o humor do que imaginamos ser".[32] Num texto incluído no Ciclo Paulo Rocha, António Preto escreve acerca da estrutura da longa-metragem e do facto de não se resignar a um fim: "o precedente e o consequente se invertem, onde a serpente devora a sua própria cauda e o final se antevê retrospectivamente como princípio".[33]
Também o desempenho dos vários colaboradores de Paulo Rocha foi elogiado pela crítica: Inês Lourenço (Diário de Notícias) destaca como a experimentada atuação de Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra serve de agulha unindo os fragmentos da narrativa;[32] Duarte Mata (C7nema) enaltece "a vitalidade dos travellings espantosos, que continuam a comprovar Acácio de Almeida como o mais distinto diretor de fotografia português"[20] e; Rui Pedro Tendinha (Diário de Notícias) elogia a escrita de Regina Guimarães por atribuir uma coerência poética ao olhar interior do cineasta.[32]