Mfecane (na língua zulu), também denominado Difaqane ou Lifaqane (nas línguas soto-tsuana), é a designação dada ao período de grande convulsão social que se viveu em grande parte da África Austral entre 1815 e cerca de 1835. A expressão significa esmagamento ou fragmentação, descrevendo o caos que se instalou na região e a dispersão forçada dos povos envolvidos, que fugindo à guerra foram obrigados a migrar para os territórios vizinhos, desencadeando uma reacção em cadeia que envolveu a generalidade dos povos do sul da África. O Mfecane conduziu à formação e consolidação de diversas unidades políticas e grupos étnicos, entre os quais os matabeles, os fengos e os macololos, e à criação de Estados como o moderno Lesoto.
Causas
Embora existam visões contraditórias sobre as causas do Mfecane, com alguns historiadores a atribuírem a sua origem à pressão do colonialismo europeu e ao esclavagismo, a visão mais consensual atribui o seu desencadear à subida ao poder de Shaka Zulu, o rei do Reino Zulu e grande líder militar que unificou os povos de línguas angunes entre os rios Tugela e Pongola nos primeiros anos do século XIX, criando uma grande potência militar na região.
A criação dessa potência militar, o Reino Zulu, resultou directamente do crescimento populacional que se tinha verificado na África Austral durante o século anterior, em boa parte consequência de ali ter sido introduzido o cultivo do milho pelos portugueses. O milho produzia bastante mais alimento do que o sorgo e as restantes culturas tradicionais, permitindo alimentar uma população muito maior, embora com acrescidas necessidades hídricas: daí resultou uma crescente pressão sobre os solos aráveis, em particular os sitos próximo dos rios, e uma muito maior disponibilidade de homens, o que permitiu criar grandes levas de guerreiros livres da obrigação de participar nos trabalhos agrícolas, pois a produtividade do milho permitia dispensar mão-de-obra.
Esta nova situação sócio-económica permitiu a Shaka Zulu criar um exército permanente, bem alimentado e bem treinado, uma realidade nova no panorama político da África Austral.
Entretanto, em finais do século XVIII a maioria das terras aráveis propícias à cultura do milho estavam ocupadas, ao mesmo tempo que o esgotamento dos solos e um declínio na precipitação diminuía as colheitas e aumentava a pressão sobre os recursos, levando a crescentes disputas sobre a posse de terras onde o milho pudesse ser cultivado. A primeira década do século XIX correspondeu a um período de seca, acelerando a desestabilização da região.
Neste contexto, em 1817, Dingiswayo, líder dos mtétuas, um grupo de povos que se tinham instalado nas terras a sul do rio Tugela, formou uma aliança com os povos de etnia tsonga, passando a controlar as rotas comerciais que do interior levavam ao entreposto português da baía de Maputo (ou baía de Delagoa como lhe chamavam os britânicos), com destaque para a nascente povoação de Maputo. Esta aliança interferiu com as rotas comerciais usada pelos povos anduandués, também eles agrupados numa aliança informal liderada por Zwide e centrada em terras mais a norte, nas margens do rio Pongola. Escaramuças entre forças de ambos os grupos começaram a ser cada vez mais frequentes, servindo de catalisador para a guerra generalizada que foi o Mfecane.
A subida ao poder de Shaka Zulu e o domínio Zulu
Quando os mtétuas foram derrotados pelos anduandués liderados por Zwide, e Dingiswayo morto, muitos dos clãs mtétuas entraram em aliança com o clã zulu, até aí um parceiro menor, formando uma grande confederação sob a liderança de Shaka Zulu, o líder zulu. No processo os zulus conquistaram e assimilaram um número crescente de tribos da área, assumindo-se como a maior força da confederação. Quando novas técnicas guerreiras desenvolvidas por Shaka Zulu os levaram à vitória na batalha de Gqokli Hill, estava iniciado o percurso que conduziu à derrota e subjugação dos anduandués e à formação da grande potência militar zulu liderada por Shaka Zulu.
Nas guerras de conquista e assimilação que se seguiram, em geral apenas as mulheres e as crianças dos clãs e aldeias conquistadas eram aceites, sendo os homens, em particular os idosos, mortos ou obrigados a procurar refúgio noutras regiões. Neste processo formaram-se crescentes grupos de guerreiros desapossados das suas terras e famílias que replicavam a táctica, conquistando outras aldeias e terras, numa reacção em cadeia que se propagou por uma extensa região da África Austral, envolvendo múltiplos povos e criando um processo de rápida mutação social e política.
Consequências do Mfecane
Para leste, os refugiados deste turbilhão social foram assimilados pelos povos de língua xossa da actual região do Cabo Oriental, formando os fengos. Foram sujeitos a sucessivas ondas de ataques pelos povos vizinhos e severamente pressionados pela crescente presença britânica na região.
Moshoeshoe I do Lesotho conseguiu unificar os clãs da região montanhosa do actual território de Cuazulo-Natal, construindo fortes nas montanhas e mantendo um complexo processo diplomático que permitiu a manutenção da sua autonomia face aos europeus e aos povos vizinhos, repelindo múltiplas agressões. Este processo levou à formação do actual reino do Lesoto.
Soshangane, um dos generais de Zwide, refugiou-se com os seus exércitos no actual território de Moçambique, seguido pelo resto dos anduandués após a sua derrota por Shaka Zulu na batalha de Mhlatuze em 1819. Formaram uma grande confederação, dominando o vasto território que ficaria conhecido na historiografia portuguesa e moçambicana pelo nome de império de Gaza. No processo subjugaram os povos tsongas que viviam naquela região, muitos dos quais se viram obrigados a fugir, atravessando os montes Libombos e internando-se no norte do actual Transvaal.
Zwangendaba, do clã Jere ou Gumbi, um dos comandantes do exército anduandué, retirou para norte com Soshangane após a derrota de 1819. Continuando para além do território actual de Moçambique, fundou um Estado angune na região entre o lago Niassa e o lago Tanganica.
Os povos suázis que viviam no território do actual Essuatíni fixaram-se a sudoeste da região e mantiveram guerras periódicas com os anduandués. Sobhuza, um dos líderes suázis, por volta de 1820 conduziu o seu povo para as regiões montanhosas de maior altitude como forma de se proteger dos ataques dos zulus. Após esta migração, passaram a ser conhecidos por suázis (até então chamavam-se "anguanes"), e Sobhuza fundou o Reino Suázi naquilo que é hoje a região central de Essuatíni.
O general zulu Mzilikazi entrou em ruptura com Shaka Zulu e fundou o clã cumalo dos zulus no território que é hoje o Estado Livre de Orange e partes do Transvaal. Quando os bôeres da grande jornada entraram naquela região em 1837, derrotas em diversas escaramuças convenceram Mzilikazi a mudar-se para o território a norte do rio Limpopo e a estabelecer o Reino Mutuacazi dos matabeles na região hoje conhecida por Matabelelândia Sul, no sul do actual Zimbábue.
Referências
Chaka, roi des Zoulous, de Henry Francis Fynn, Éditions Anacharsis, 2004, traduzido do inglês (The Diary of Henry Francis Fynn)
OMER-COOPER J.D, The Zulu Aftermath A Nineteenth-Century Revolution in Bantu Africa, [1966] London : Longman, Green and co, 1966, 208 p.