O Corpus hippocraticum (do latim: Coleção hipocrática) é uma coletânea de cerca de 60 tratados principalmente do início da Grécia Clássica que embora tenha muitas vezes sua autoria vinculada a Hipócrates de Cós, em seu conjunto não pode ser atribuído a nenhum autor especifico. A obra é considerada um esforço coletivo que engloba grande diversidade filosófica e pluralidade de práticas médicas de variados autores gregos.[1] Essa diversidade contribuiu para que o Corpus Hippocraticum fosse interpretado por meio de múltiplas perspectivas.[2] Os tratados mais antigos da coleção hipocrática são datados, aproximadamente, de 450 a 430 a.C., enquanto os mais novos seriam dos séculos IV e III a.C..[3] A coleção de aproximadamente 60 livros escrita no dialeto iônico[4] foi inicialmente compilada e catalogada pela escola médica de Alexandria, durante o período helenístico.[5]
Origem: autoria e história da publicação
Além de tratados médicos, o Corpus Hippocraticum possui conferências sobre medicina e filosofia, textos para leigos e notas para orientação de alunos de minutas de discursos.[6] Até o século XVIII foi considerado uma obra básica no ensino da medicina ocidental, e somente as modernas descobertas da ciência do século XIX ultrapassaram sua importância nas escolas médicas.[7] Embora a coleção tenha sido tradicionalmente atribuída à Hipócrates de Cós, não é possível afirmar que nenhum dos escritos seja de sua autoria.[8] Alguns especialistas sugerem que muitos textos do Corpus Hippocraticum foram escritos por Pólibo, seu genro.[9] Os mais antigos textos datam de cerca de 440 a.C., e os mais novos, dos séculos IV e III a.C..[10]
Conteúdo
Lista cronológica de obras
Cronologia das obras
Obras
Segunda metade do século V a.C.
Ares, águas e lugares; Sobre a doença sagrada; Prognóstico; Sobre a arte médica
Último quarto do século V a.C.
Sobre os ventos (gases); Sobre a medicina antiga; Do regime nas doenças agudas
Fim do século V a.C.
Epidemias, Livros I e III (por volta de 410); Da natureza do homem; Do regime salutar (por volta de 410 - 400)
Fim do século V e começo do IV a.C.
Articulações; Fraturas; Da oficina do médico; Sobre as feridas na cabeça; Instrumentos de redução (Mochlique); Da natureza dos ossos; Epidemias II, IV e VI; Dos humores; Sobre o regime; Da geração; Da natureza da criança; Sobre o parto de oito meses e Sobre o parto de sete meses; Da excisão dos fetos (ou Embriotomia); Das doenças femininas I e II; Sobre as mulheres estéreis; Da hiperfertilidade; Da natureza da mulher; Dos músculos; Das feridas; Juramento; Sobre o uso dos líquidos; Das doenças II e III
Entre 400 e 390 a.C.
Das doenças internas
380 a.C.
Das afecções; Dos remédios; Das doenças I; Aforismos; Das crises
358-348 a.C.
Epidemias V e VII; Sobre as fístulas; Da doença das virgens; Sobre as hemorroidas; Dos lugares no homem
Época helenística certa ou provável
Lei
século IV a.C. ou mais cedo
Sobre os alimentos; Do coração; Sobre as glândulas
Época romana e cristã
Sobre a anatomia; Sobre a dentição; Sobre o médico; Sobre a decência; Testamento
No período da Grécia arcaica, os gregos, provavelmente, cuidavam dos doentes com métodos religiosos, pois acreditavam que a doença e a saúde eram responsabilidades dos deuses. O que mantinha vivo um organismo era a energia vital, presente em todas as partes do corpo.[12] A energia vital era mantida por fatores externos ao corpo, ou seja, por alimentos, bebidas e o ar. Posteriormente, durante os séculos VI e VI a.C.,[13] desenvolveu-se a teoria de que os componentes do Universo (a água, a terra, o fogo e o ar) e, portanto, do próprio organismo, eram responsáveis pelas características deste e que suas variações quantitativas representavam o “equilíbrio” e o “desequilíbrio”: a saúde e a doença, respectivamente. Durante a Grécia Clássica surgiu entre os filósofos gregos a convicção de que a natureza humana não era exclusivamente dependente dos deuses e que, por esse motivo, era fundamental o conhecimento da essência natural do homem. Os conhecimentos e as doutrinas dos filósofos e dos médicos da Grécia Clássica sobreviveram até hoje, graças, principalmente, à coletânea dos textos hipocráticos da Biblioteca de Alexandria.[14] O Corpus Hippocraticum foi de grande importância para a medicina, pois, com a mudança na Grécia do período arcaico para o clássico, surgiu uma grande preocupação com a razão, o que resultou em uma mudança na visão da medicina em si, fazendo o médico desprender-se do divino.[14] Todavia, suas informações são mais detalhadas sobre a ética médica e de como o médico deve agir em suas consultas em prol do seu paciente. A fisiologia e a anatomia humanas foram relacionadas ao de plantas e animais devido a sua similaridade em certos aspectos pelos estudos dos autores hipocráticos.[15] O corpo humano na época da Grécia antiga não era estudado a fundo, tendo-se assim pouco entendimento. Apenas existem teorias e esquemas que podem ajudar a entender o comportamento sanguíneo e dos humores em meio a uma busca por conhecer melhor internamente o corpo do ser humano.[16]
Teoria dos humores
A descoberta mais famosa conhecida sobre os autores hipocráticos passa pela teoria dos quatro humores corporais, conhecidos como: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela. O equilíbrio sobre tais humores designavam saúde em uma pessoa, assim como sua instabilidade, a causa de doenças.[17] Isso foi utilizado como método curativo no período clássico da Grécia, onde teve através do tempo sua consolidação no século de Péricles (444 a 404 a.C.) onde pelo uso ou não uso de certos alimentos ou líquidos, era possível ter uma regulação através da falta ou excesso do mesmo, o que resultava na cura do indivíduo.[18] Juntamente de tal conhecimento, os humores estão ligados a um elemento da natureza ou órgão específico e também se diferem um dos outros pela proporção entre os elementos.[19] Como exemplo podemos citar o sangue, que é quente e úmido e tem relação com o ar e coração sendo responsável pela alegria pessoal.[20]
Principais obras
Da natureza do homem
O Da natureza do homem é atribuído a Pólibo (genro de Hipócrates) e figura como um dos textos dos quais a autoria é mais precisa, pois Aristóteles cita um trecho da obra em seu História dos Animais, atribuindo-o a Pólibo.[21] O livro trata principalmente de observações e defende que as doenças não têm uma causa divina, mas sim são causadas pelo desequilíbrio dos quatro humores existentes no corpo humano (sangue, fleuma, bile amarela e bile escura). Ele também recomenda como método de tratamento a sangria, que é a retirada do sangue que estaria causando a doença por estar em excesso. Ele também explica que doenças específicas, como a disenteria, são mais comuns no verão e na primavera pelo sangue estar mais quente nesta época.[22] Também afirma que se uma doença começou por uma parte forte do corpo, como o coração e o cérebro, tem mais chances de ser fatal pois conseguirá se espalhar para as partes fracas mais facilmente.[23]
Ares, Águas e Lugares
Ares, águas e lugares é um tratado redigido no contexto das fusões de ideias helênicas na cidade de Atenas, entre elas, ideias médicas.[24] A obra é atribuída ao final do século V a.C.. Assim como Sobre a doença sagrada, o texto é permeados por valores empíricos e laicos que opõem-se com as praticas tradicionais mitológicas anteriormente empregadas.[24] O livro apresenta a dieta como forma de restauração do equilíbrio da natureza humana nos casos em que não é possível restringir o contato com o elemento causador do desiquilíbrio.[25] Ele também nos mostra os muitos elementos que influenciam na medicina, entre eles estão os fatores geográficos como vento, solos, climas e águas em conjunto com as características humanas, sua tendência para o labor e seus hábitos alimentares.[26] A água é considerada parte fundamental para a saúde por mais que algumas variedades também possam transportar conteúdos danosos.[27] A mistura de elementos naturais diversos, sejam eles águas provenientes de fontes distintas ou ventos de direções contrárias, levam à enfermidade, devido ao fato dessas variedades não se misturarem e gerarem conflito interno no corpo do indivíduo.[28] As mudanças astrais e sazonais eram comumente associadas à modificações patológicas, datas importantes do calendário solar e astral e eram consideradas pontos de mudança do quadro do paciente.[29] A hereditariedade de características é conhecida pelo autor e usada para explicar a similaridade entre indivíduos de um mesmo povo.[30] Acredita-se que um povo que se assenta em clima ameno e com pouca variação climática entre as estações tenha por consequência aparência e costumes homogeneizados.[31] Enquanto isso, climas diversificados levam a uma diversidade populacional.[32]
O Juramento de Hipócrates
O Juramento de Hipócrates é talvez o mais famoso texto de todo o Corpus Hippocraticum por sua utilização como espécie de código de ética médico. Como muitos textos, foi escrito no dialeto iônico, por volta dos séculos V e III a.C.. O juramento é ainda hoje a base do sistema ético da medicina e uma versão moderna é geralmente usada como parte do rito de passagem do estudante para tornar-se um profissional.[33] Também não podemos atribuir autoria de forma precisa a ele. O Juramento pode ser dividido em três partes principais: invocação, cláusulas e imprecação.[34] Na invocação, faz-se um apelo a Apolo, Asclépio, Hígia e Panaceia, divindades associadas com a prática médica, seguida de um apelo aos outros deuses. As cláusulas são compromissos apresentados de forma sequencial, que o médico deve seguir tanto na esfera pessoal quanto profissional.[33] A imprecação trata-se de um termo de punição para aqueles que não seguirem o juramento feito aos deuses, conforme estabelecidos nas cláusulas.[35]
"[1a] Juro por Apolo médico, Asclépio, Hígia, Panaceia e todos os deuses e deusas, e os tomo por testemunhas que, conforme minha capacidade e discernimento, cumprirei este juramento e compromisso escrito:
[1b] considerar igual a meus pais aquele que me ensinou esta arte, compartilhar com ele meus recursos e se necessário prover o que lhe faltar; considerar seus filhos meus irmãos, e aos do sexo masculino ensinar esta arte sem remuneração ou compromisso escrito, se desejarem aprendê-la; compartilhar os preceitos, os ensinamentos orais e todas as demais instruções com os meus filhos, os filhos daquele que me ensinou, os discípulos que assumiram compromisso por escrito e prestaram juramento conforme a lei médica, e com ninguém mais; [2] utilizarei a dieta em benefício dos que sofrem, conforme minha capacidade e discernimento, e além disso repelirei o mal e a injustiça; [3] não darei, a quem pedir, nenhuma droga mortal, nem recomendarei essa decisão; do mesmo modo, não darei a mulher alguma pessário para abortar; [4] com pureza e santidade conservarei minha vida e minha arte; [5] não operarei ninguém que tenha a doença da pedra, mas cederei o lugar aos homens que fazem essa prática. [6] Em quantas casas eu entrar, entrarei para benefício dos que sofrem, evitando toda injustiça voluntária e outra forma de corrupção, e também atos libidinosos no corpo de mulheres e homens, livres ou escravos. [7] O que vir e ouvir, durante o tratamento, sobre a vida dos homens, sem relação com o tratamento, e que não for necessário divulgar, calarei, considerando tais coisas segredo. [8] Se cumprir e não violar este juramento, que eu possa desfrutar minha vida e minha arte afamado junto a todos os homens, para sempre; mas se eu o transgredir e não cumprir, que o contrário aconteça."
Da doença sagrada
Este livro é um dos primeiros relatos sobre a epilepsia, que naquela época foi explicada como um acúmulo da fleuma nas veias próximas ao cérebro.[37] O autor do livro reitera mais de uma vez que as doenças não tem causa divina, mas sim humana. O autor atesta isso após notar que os tratamentos utilizados, tais como orações e encantamentos, não mostraram efeito. Este pensamento foi fundamental para o desenvolvimento da medicina nos séculos seguintes.[38] O autor também diz que quanto mais sangue há no paciente, menos afetado pela doença ele será. O texto também fala sobre a anatomia que se conhecia do corpo e principalmente do cérebro naquela época.[39]
Do médico
Este é um tratado que cita as características éticas do médico e explica diversos métodos terapêuticos, esclarecendo mais detalhadamente o processo cirúrgico, o uso de instrumentos da forma correta e a explicação deles. Fala também do método de cirurgias em meio a guerras e do tratamento de feridas e abscessos.[40]
Do decoro
Este livro se dedica a explicar o comportamento correto que um médico deve ter em uma consulta: o texto foi escrito ou no século III ou IV, e tem possíveis influência da doutrina filosófica do estoicismo. Tendo a sabedoria médica como um dos grandes tópicos, o livro explica a ética médica e a necessidade de uma escolha correta e coerente para um diagnóstico preciso.[41]
A lei
Retrata a formação profissional de um médico juntamente com uma explicação sobre o bom e o mal profissional. Aborda também a falta de preparação de certos profissionais, sua falta de comprometimento e a ausência de punição legal contra eles.[42]
BOYLAN, Michael. Hippocrates. Internet Encyclopedia of Philosophy. Disponível em:
http://www.iep.utm.edu/hippocra/. Acesso em: 4 de junho de 2016.
CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 252 p.
CASTRO, Fabiano S.; LANDEIRA-FERNANDEZ, J. Alma, corpo e a antiga civilização grega: as primeiras observações do funcionamento cerebral e das atividades mentais. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 24, n. 4, 2011.
CHAUÍ, Marilena. O Século de Péricles. In:____. Introdução à história da filosofia: dos Pré-Socráticos a Aristóteles. Vol. 1, 2 a Ed. São Paulo: Cia das letras, 2002.
REBOLLO, Regina A. O legado hipocrático e sua fortuna no período greco-romano: De Cós a Galeno. Scientiae Studia, São Paulo, vol. 4, n. 1, p. 45-82, 2006. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ss/v4n1/v4n1a02.pdf. Acesso em: 27 de abril de 2016.